Os soldados das Tropas Pára-quedistas foram impedidos de entoar o cântico Ó Pátria Mãe no Dia do Exército. Ocorrido o protesto dos soldados dessa tropa especial durante as celebrações, o Presidente da República declarou não ter havido qualquer proibição. Terá sido uma recomendação por razões sanitárias.
Advirto o leitor de que não tenho filiação partidária nem sou militarista. Nunca fiz a tropa nem a quis fazer. Considero o exercício da autoridade um assunto muito sério e tendo a desobedecer quando ela é exercida de forma abusiva.
As instituições militares ou militarizadas assentam na disciplina, que consiste na obediência imediata a ordens dos superiores hierárquicos sem as questionar. Este procedimento visa aumentar a eficiência no alcance de objectivos e assegurar a sobrevivência do maior número de elementos em cenários de guerra. O treino dos soldados centra-se no colectivo, no espírito de grupo, na anulação das conveniências individuais, no sacrifício pela pátria. São ensinados a dar a vida por este conceito muito difícil de definir, tal como o de Deus, sendo ambos colocados mais ou menos a par.
Quando foi noticiado o protesto, ocorreu-me que deveria haver algum problema com o cântico. Talvez a letra fosse reminiscente do fascismo e os manifestantes tivessem ligações à extrema direita. Passo a transcrever os versos do cântico, omitindo as repetições:
Ó Pátria Mãe
Por ti dou a vida
Há sempre alguém
Que não te quer perdida
Ó Pátria Mãe
Reza a Deus por nós
Há sempre um alguém
Nunca estamos sós
Ó Pátria eu vou partir
Por essas terras de além
Quem sabe se torno a vir
Só Deus sabe e mais ninguém
Despedida amargurada
Com mil tristezas sem fim
Daquela que é minha amada
E tanto chora por mim
(…)
Há tristezas e amargura
Nos lares de quem vai lutar
Tristezas daquelas tão duras
Difíceis de suportar
Tantos lares desamparados
Pois falta quem lá viveu
Tantos pais torturados
Pois o seu filho morreu
(…)
Além de inócuos, os versos parecem me ser bastante adequados à instituição militar. Embora vivamos num estado laico, a referência a Deus parece-me inofensiva. Faz todo o sentido quem coloca a vida em risco evocar o divino. A interdição de entoar o cântico nada terá a ver com o conteúdo dos seus versos.
As alegadas razões sanitárias nem merecem comentários. Na eventualidade duvidosa de não se tratar de uma interdição, mas de uma recomendação, esta, a ser verdade, seria um grande insulto. Não me parece, no quadro actual, que um pelotão a entoar cânticos seja propagador da infecção por Covid 19 e, caso houvesse incertezas, os soldados poderiam utilizar máscaras.
O vice-almirante Gouveia e Melo demonstrou nos como são fundamentais as instituições militares para nos manterem vivos e seguros. Homens e mulheres prontos a obedecer a ordens sem as questionar asseguram rapidez e eficiência no cumprimento de objectivos, por muita confusão que isso faça a civis contestatários como eu. Cada um tem a sua vocação e deve ser respeitado por a colocar ao serviço dos outros.
A interdição e a alegada recomendação constituem uma grave falta de respeito por cidadãos incumbidos, desde a mais tenra idade, através da instrumentalização do afecto, da lealdade, da honra e do sentimento do dever, a obedecer aos nossos governantes e a arriscar a vida por todos nós sem qualquer hesitação. Alguns, em troca, recebem apenas um pedaço de metal para colocar no peito, uns farrapos para enfeitar os ombros, uns apertos de mão e cumprimentos de circunstância eventualmente fotografados para a posteridade, todo o brique-a-braque simbólico do tesouro dos eleitos. Há também a parada, a oportunidade de desfilar em triunfo para a multidão, entoando os cânticos que lhes alicerçam a alma.
No domingo passado retiraram o solo onde se enraíza a moral destes soldados. Ficaram sós, apesar do que apregoa o cântico. Foi indecente. Foi violento.
Segunda-feira, 25 de Outubro de 2021